Design da manipulação

Danilo Leal
7 min readMay 23, 2020

Apesar do português ser tão rico e diverso, é desafiador falar de temas em que a palavra que melhor define um determinado conceito ou idéia não faz parte do nosso idioma. Design é um exemplo perfeito. Para entender historicamente como nos comunicamos, buscar evoluções etimológicas das palavras e seus significados é fundamental.

Se formos decompor a palavra, fazemos-o em duas partes: de e sign.

No inglês, o prefixo de é utilizado quando queremos atribuir um significado oposto. Em algumas palavras em português o utilizamos da mesma forma, como por exemplo:

Fazer e Desfazer

Forestation e Deforestation

Contudo, em design, o prefixo não compreende essa interpretação. Se aproxima mais de um significado construtivo, de derivação, devaneio, dedução. E aqui cabe uma reflexão. Colocamos em prática essas palavras quando há um sentimento que refere-se ao incompleto. A própria vida é incompleta. De todos os seus significados, temos alguns. Criamos outros. Quando falta, caímos em devaneio. Na ciência, precisamos de evidências. Quando há indicações suficientes, podemos deduzir. Diz respeito a preencher o vazio, o que ainda não sabemos.

Sign é derivado do verbo latin signature: marcar, assinar, registrar, declarar. Ou seja, evidencia o espaço mais prático da palavra. O físico, o visto, o sentido nos forçam a aplicar objetivamente até mesmo nossas crenças e digressões. Desde tempos antigos usamos assinaturas como um dos protocolos de confirmação mais respeitados. Teria algo mais prático e registrado do que sua assinatura em algum contrato?

Dessa forma, vemos de forma breve a multi-faceta do design. Em um dado momento, precisamos ir além do observável e até mesmo do possível. Algumas metodologias famosas resumem a prática como divergir. Em outro, precisamos fazer o contrário, convergir. Essas duas situações tendem a suprimir o espaço de ação do acaso. Nunca saberemos todas as forças que influenciam um evento com precisão. É aquela história de que a medida que sabemos mais, mais sabemos sobre o que não sabemos. Porém, o design é uma ferramenta para estreitar essa angústia.

O inglês também permite uma interpretação mais objetiva desses dois momentos. Sobretudo pois o termo pode ser utilizado como verbo e substantivo. Quando estamos fazendo design — ou designing — podemos compreender algo semelhante ao devaneio. Em contrapartida, um design — a design — é o resultado, a conclusão.

Tentamos colocar em prática essa palavra que suprime tantas metodologias para identificarmos sentido no mundo. São caminhos que criamos para facilitar a atribuição de significado as coisas. E após tantos anos de evolução da sociedade, chegamos num ponto onde muitas estruturas existem não mais por acaso, mas por design. Muito é socialmente decidido. Por alguma unidade — alguém ou muitos — em algum momento.

Estragado por design

Quem já leu o livro Ruined By Design de Mike Monteiro não vai encontrar muita novidade nessa linha de pensamento. E meu ponto não é nem te apresentar tal argumento em totalidade. A obra que cito o faz muito melhor e com mais propriedade. Meu objetivo aqui é te apresentar um exemplo prático e atual.

Vivemos hoje talvez a maior crise dos últimos 100 anos. Cada vez mais ouvimos isso. Estamos extrapolando todos os indicadores. E a desesperança cresce exponencialmente também. Nesse momento, é possível identificar tantas estruturas que estão colhendo as frutas, doces pra uns, podres para outras, de seu design.

A nossa sociedade é a convergência de uma proposta, de um devaneio. Todos os impactos graves dessa crise não são produtos do acaso ou de desaviso. São resultantes de um plano que compreende a existência dessas estruturas para funcionar. No Brasil, obviamente, muito se fala da preocupação com a parcela vulnerável da sociedade. Esquisitamente, essa parcela é a maior parte da sociedade. Tudo o que essas pessoas não têm, nunca tiveram e nunca terão não é acaso. É decidido, por design. São tantas outras preocupações emergenciais. Há um planejamento para ser assim. Há um propósito. E alguém sempre dá sua assinatura para garantir que está funcionando.

Porém, nenhum design é aplicado com perfeição. Sempre haverão lacunas. E aqueles que exercitam sua consciência, as enxergam com facilidade. E atuam também, ajudando ao próximo e lutando pela queda de todos esses pilares estruturais que, historicamente, sempre mataram muitas pessoas, todos os dias, mesmo antes do vírus.

O desafio é que enxergamos o design por aplicação, e não seu planejamento. Ou seja, não assumimos, com frequência, o poder de dar nossa assinatura e mudar essa trajetória. Acaba assinando só quem leu o projeto todo. E essas pessoas continuam assinando pois os benefícios desse programa consistentemente continuam privilegiando as mesmas parcelas da sociedade. Que são eles mesmos, quem assinam.

Por que estamos só agora, urgentemente — e porcamente — falando dos riscos e péssimas condições da sociedade vulnerável? Por que não o fazemos desde sempre? Não é acidental.

Entendendo o projeto

De forma objetiva, utilizamos muito o termo para falarmos de produções gráficas. Design em português compreende mais, em geral, um registro visual de alguma idéia do que um plano, um projeto propriamente dito. Não há problema nisso, pois ainda representa parte conceito. O resultado prático e visual apresenta-se como uma síntese. E demanda uma certa atenção ao detalhe e conhecimento do exercício do design para entender a trajetória até um resumo da história. Ultimamente, um design sempre quer se comunicar com alguém. Sempre há um diálogo, uma mensagem. E tende a ser bem específico.

Na esquerda, o painel Coronavírus do SUS no dia 11/05 e na direita no dia 21/05.

Vamos entender isso como um estudo de caso. Esse é o painel de monitoramento da COVID-19 do SUS no Brasil. Desde a instalação da pandemia por aqui no meio de Março, esse painel está ativo e sofreu várias alterações (ou iterações) interessantes. Mas ao longo do último mês, ele levou uma bronca. Não estava seguindo o plano.

Numa situação como essa, precisamos mais do que nunca de profissionais que saibam interpretar dados de forma responsável, holística e cientifica. Isso pois precisamos entender para agir. Mas entender certo. Contudo, não quero deixar espaço para o debate filosófico, ético e moral do certo e errado. Parto do princípio de que o maior valor que temos é a vida, portanto, certo é o que preserva mais vidas.

Inicialmente, vimos no painel do SUS uma comunicação puramente informativa. Ou seja, a forma como cores, tipografia e dimensões foram usadas não nos permitia, necessariamente, a ter uma interpretação inclinada, enviesada. Mas ao contrário, neutra. Todos os dados eram dispostos de forma parcialmente igual. Fica a cargo dos especialistas entenderem a comunicação por trás.

Porém, a medida que a pandemia foi se instalando e se agravando, o design visual, a síntese desse plano, mudou. Parece simples, mas vamos olhar no detalhe. A interface ressalta em fontes grandes e cor verde a quantidade de recuperados. Ou seja, está tudo bem por aqui. O Brasil… passa bem, recuperando! Em contra-partida, os dados de óbitos, que consistentemente crescem no fim do mês de Maio, está com fontes pequenas, cores mais sutis, não chama muito atenção. Pouco importa mais de 20,000 mortos em 2 meses.

Podemos analisar também um design que não é visual, mas de dados. Para entendermos o comportamento de um certo indicador, precisamos, usualmente, entende-lo ao longo do tempo. Qual o melhor período de comparação depende do dado, do propósito. Sabemos que o Brasil é um dos países que menos testa para a COVID-19 e, portanto, mais sofre com sub-notificação de casos. Então, repare. A interface apresenta uma seta, dos dados de infecção e óbitos, para baixo. Novamente, o design diz pra você: O Brasil… passa bem, se recuperando! A comparação dia após dia dos números epidemiológicos num país que não alcançou números absolutos de testes minimamente parecidos com o que demais paises fazem por dia não comunica muito, de fato, para o comportamento da doença. Porém, o design ainda sim, quer te passar uma mensagem bem específica.

O agravamento consistente da situação no Brasil forçou essa mudança de comunicação. Não há um compromisso com a verdade. Aliás, nunca houve, e esse sempre foi o projeto. Nosso plano. E não só nos últimos dois anos, mas há muito tempo. As partes vulneráveis da nossa estrutura sempre estiveram aqui, precisando de muito mais do que só atenção. E várias assinaturas foram dadas sem que pudéssemos ver qualquer compromisso pra mudar esse projeto.

Tudo isso é por design. A morte em crescimento, pela pandemia e vários outros fatores, sempre esteve programada. Uma unidade que deduz e diverge sobre como mantê-lo e depois converge para pôr em prática. A atualização do painel do SUS da COVID-19 deixa claro. Deixa pequeno, na verdade. E os que sentem o peso do plano, sofrem profundamente, como sempre foi. O design, cumpre seu papel. Uma ferramenta para identificar sentido na vida. Aqui, de alguns. Poucos, muito poucos. Fica cada vez menor o espaço da verdade e tamanho da vida no design do sistema brasileiro.

Um agradecimento especial ao meu queridasso João Pedro por revisar e opinar a respeito desse registro. Indico que leia também um registro do Daniel Santiago sobre o mesmo tema, com quem felizmente construo um melhor design na Loggi :)

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